2 de jan. de 2019

A filha do pescador


A água salgada ia e vinha acariciando a areia em seu movimento contínuo sem fim. A poucos metros, com a primogênita nos braços, sentada sobre as pedras, Andréia observava mais um entardecer.
Os pescadores locais, vestindo bermudas e camisetas, adentraram o braço do mar no lado oposto à praia. O vento e a água gelada não os afastavam, era temporada de tainhas. Firmes no banco de areia na beirada do canal, os homens atentos fitavam a imensidão líquida à frente na espera dos visitantes especiais que indicavam o melhor momento de jogarem suas tarrafas.

Andréia também os esperava. Há anos ela se sentava nas pedras à beira-mar, em um ritual, primeiro de admiração a seu pai e agora, ao seu marido Otávio.
Sorridente, ela acenou ao marido. O tarrafeiro no lado oposto do canal lhe mandou um beijo em resposta. Ambos se agradavam dessa companhia vespertina, ela atenta às belezas de seu lar e Otávio aos peixes.

Ela recordou-se da primeira vez em que foi convidada a estar com o pai do outro lado do canal, um presente inesquecível de dez anos. Ao chegarem ao lugar de pesca, o pai estendeu a tarrafa pela areia e conferiu as amarras da rede. Ansiosa, ela acompanhou os movimentos daquele homem, atenta as instruções dadas com gestos confiantes. Desde criancinha, ansiava por estar ali com ele, ver com seus próprios olhos as histórias contadas na mesa de jantar.

A água gelada lhe fez recuar. O pai a incentivou lhe dando a mão, adentraram com passos calculados no mar. Ao lado do pai, protegida por seu braço, ela esperou e esperou atenta a água. Quando pensava que sua primeira experiência de pesca fosse frustrada, os botos cinzas apareceram.
Ela seguiu o movimento do pai, em um atirar conjunto das tarrafas, assim como seus companheiros de pesca. Seus olhos infantis fixaram em encantamento aos botos, que percorriam o canal como se flutuassem na água, jogando porções de peixes para as redes dos pescadores. Como agradecimento, os homens sempre devolviam ao mar algumas tainhas diretamente para as bocas dos botos ajudantes.

Entre todos os animais, um bem pequeno lhe chamou atenção. Um filhote, o pai lhe disse. Era sua primeira aparição no canal, assim como ela. Os tarrafeiros lhe desafiaram a nomear o pequeno, contudo nenhum nome parecia adequado para um serzinho tão gracioso.

A responsabilidade de dar um nome ao novo boto preencheu sua mente, e assim ela voltou a praia após o jantar, era o melhor lugar para pensar. O começo da estação fria havia afastado os turistas e as areias encontravam-se desertas.
Pensativa, ela caminhou sobre os grãos claros que por vezes eram carregados pelo vento como bailarinos a dançar no ar, enquanto algumas ondas mais ousadas molhavam seus pés.

De repente, avistou algo a se debater na areia mais adiante. Ao se aproximar, o coração de Andréia disparou em desespero. O pequeno boto estava encalhado na areia e as ondas o empurravam cada vez mais para a praia. O animal se retorcia na tentativa de retornar ao mar, sem forças para isso, enquanto os outros de sua família se mantinham a uma distância segura, indo e vindo à superfície em uma dança angustiada.

Andréia correu até o filhote. Em um momento de desespero, tentou puxá-lo pela cauda de volta para o fundo, mas era muito pesado para uma garota magrela de dez anos. Ela gritou para o calçadão em busca de ajuda enquanto jogava pequenas porções de água com as mãos em formas de conchas na pele úmida e lisa do boto.
Um garoto um pouco mais velho passava de bicicleta.

— Socorro! — ela voltou a gritar aflita.

O garoto veio ajudar, demorou um pouco a compreender o que acontecia. Quando ele avistou Andréia jogando água sobre um pequeno boto, ele sorriu e se aproximou. Juntos conseguiram carregar o filhote para dentro da água salgada.
Emocionados e molhados, Andréia e o garoto suspiraram aliviados quando o filhote voltou para sua família marinha e em poucos minutos desapareceu nas profundezas.

— Adeus, Pequeno Guerreiro! — ela gritou ao mar, por fim satisfeita por encontrar o nome perfeito.
Naquele momento ela sabia que estaria ligada de alguma forma a esse pequeno boto. Mas o que ela não sabia, e só veio a descobrir alguns anos posteriores, é que naquele dia conhecera o amor de uma vida.

Cada vez que Andréia se sentava nas pedras ao final do dia, ela recordava do pequeno filhote e como Otávio veio ao seu socorro. Olhou de relance para o grupo de pescadores do outro lado da margem e sorriu ao acompanhá-los pacientemente à espera da hora certa de jogar o tarrafo.
A água tranquila do canal tremulou, uma nadadeira dorsal apontou na superfície. Os pescadores prenderam a respiração e posicionaram as tarrafas, ela se levantou das pedras para melhor contemplar quando um boto cinza saltou, seguido de mais três e voltaram a mergulhar em um balé de fartura no encontro com o cardume de tainhas. A bebê em seus braços bateu palmas e sorriu.

Assim que os botos passaram, os pescadores receberam suas recompensas dessa antiga parceria entre mamíferos. Alguns dos homens acenaram agradecidos aos botos quando recolheram as tarrafas recheadas para o sustento da família.

Andréia também acenou e riu deslumbrada, quando o menor dos botos se aproximou de onde ela estava e pulou em cumprimento. A ligação estabelecida entre ela e o “Pequeno Guerreiro” se mantinha firme, mesmo depois de tantos anos.

Podia ser apenas uma superstição de filha de pescador, mas ela acreditava que os dias brindados com a presença do “Pequeno Guerreiro” eram prelúdios de boas notícias. Sorridente, Andréia beijou a bochecha da filha e desejou que a pequena pudesse crescer também com a presença desses magníficos mamíferos, assim como seus netos, bisnetos e tataranetos.


O conto faz parte da coletânea Contos de Imbé, após ser selecionado no concurso de comemoração ao aniversário da cidade de 2014. A cidade litorânea de Imbé, pela qual tenho muito carinho por fazer parte de minha infância a adolescência, me presenteou com esse resultado.

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