31 de dez. de 2018

Divã Vermelho- conto

dezembro 31, 2018 0 Comments

A chuva torrencial escorria pela grande vidraça do consultório. Observei os faróis a alguns andares abaixo ao esperar minha última paciente da semana, Srta. Luna Missio. Aceitara atendê-la fora do horário, no avançado da noite, pois era difícil dizer não a uma criatura tão formosa.

Um suspiro cansado ecoou de minha garganta, passei os dedos pelo cabelo salpicado dos primeiros fios brancos. Nesse exato momento meu único desejo era relaxar na banheira ao som de música clássica enquanto fumava um cigarro.

O silêncio se interrompeu por duas batidas suaves na porta, a espera acabara. A jovem entrou no consultório retirando o longo casaco encharcado pela chuva, sacudiu os cabelos louros e encarou-me de modo enigmático.

— Continuamos de onde paramos na sessão anterior?

— Como desejar, senhorita.

Convidei-a com um gesto a se deitar no divã vermelho de veludo e sentei em minha cadeira habitual de psicanalista mais atrás. Discreto, vasculhei minhas anotações da sessão anterior, à procura da primeira de Luna. Entre tantos pacientes, às vezes, era difícil recordar as particularidades de cada um. “Em luto pela morte do pai” foram as únicas palavras escritas por mim, mas seriam suficientes para retomar.

Luna respirava lentamente observando a água escorrer pelo vidro da janela. Na sessão anterior foi o mesmo. Ela tinha seu próprio tempo para começar e eu paciência para esperar.

— Sinto falta de caçar com meu pai. — ela soltou em um suspiro pensativo sem desviar o olhar da chuva.

— É o que mais sente falta? — observei na tentativa de compreender sua dor.

— Uma caçada foi nosso último momento juntos. Meu pai era o melhor caçador de nosso grupo — Luna respondeu com força, indicava mágoa. Seu olhar me analisou em silêncio.

Senti-me incomodado, tinha uma espécie de fogo naqueles olhos claros, um misto de raiva e desejo.
— Como se sente sobre isso?

Ela desviou o olhar novamente para a chuva. A aceleração do movimento de sobe e desce de seu peito me mostrou sua tristeza. Minha intuição treinada me dizia haver algo não dito. Fatigado, passei a mão nos cabelos à espera da resposta.

Observei-a de relance, ela possuía uma pálida beleza intrigante, com cabelos e cílios claros quase brancos e olhos azuis como piscinas. Os lábios vermelhos contrastavam com o resto monocromático, constantemente sérios. A jovem tinha uma sensualidade natural, como se todos os movimentos, desde sua respiração e o modo como olhava melancólica a chuva, me convocasse a tocá-la.

Rapidamente desviei o olhar, havia cometido alguns erros no passado ao me envolver com mulheres jovens. Erros que custaram meu casamento e quase a perda de minha licença, não erraria novamente.

— Dr. Machado, você já caçou? — Inesperadamente ela me fitou em clara fuga da pergunta anterior.

— Estamos aqui para compreender você, não para falar de mim — disse no automático profissional, embora começasse a suar frio quando ela mordeu o lábio inferior. Meu olhar focou os ponteiros do relógio na parede imaginando se aguentaria manter escondido meu impulso predatório até o fim da sessão.

— Queria saber sua resposta. — Ela girou o rosto, me encarando enigmática. Ajeitei-me na cadeira, desviei o olhar para minhas anotações. Aqueles olhos translúcidos dificultavam minha luta interna em manter-me profissional. — Então, Dr. Machado, você já caçou alguma vez? — Ela se sentou no divã, mantendo seu olhar no meu.

— Não é um costume. — Engoli em seco, confuso se a forçava a retornar para suas questões ou mantinha essa linha de conversa. Ela mordeu os lábios em espera, isso me desarmou completamente.

O terapeuta desaparecera e o modo homem entrou em ação. — Participei, a alguns anos, de uma caçada a porcos selvagens com uns amigos.

— E como foi? — Os olhos dela me focaram com intensidade enquanto ela ia em direção ao seu casaco úmido, que fora pendurado no cabide atrás da porta, e retirava um maço de cigarros do bolso.

— Emocionante — respondi acompanhando-a com o olhar. Luna retirou um cigarro do maço ao sorrir discretamente. — Você não pode fumar aqui — relembrei-a ao girar a cadeira em sua direção, ela mordiscou a ponta do cigarro em um meio sorriso ao ignorar minha proibição. O flerte estava cristalino, e eu o aceitei com deleite. — Encontramos um lobo branco — comentei na tentativa de salientar minha masculinidade. — Você vai dizer que é mentira. Lobos não deviam existir na América do Sul, mas ele estava lá.

— E você o pegou?

— Sim. — Minha respiração parou quando ela se inclinou e manteve seus olhos emparelhados aos meus, sua mão retirou do bolso de meu casaco meu isqueiro. Quero tocá-la! Pigarreei. — Não conte isso para ninguém. Provavelmente ter um tapete de lobo deve ser ilegal. — tentei me exibir para ela.

— Um tapete! — Séria, ela ergueu a sobrancelha ao acender o cigarro.
Sorri sedutor ao acenar positivamente. Quem sabe poderia convidá-la para ver o tapete? Que coisas inomináveis faríamos sobre ele! Soltei um longo suspiro.

— O senhor tem muitos segredos, Dr. Machado. — Ela deixou o cigarro dançar entre seus dedos, para depois o apagar em minha mesa de madeira. Abri a boca chocado decidido a repreender seu ato de rebeldia. Contudo, ela apoiou a mão em meu ombro e eu apenas me calei. — Sentiu-se poderoso ao matar o lobo, não é?

— Com certeza! — respondi com força. A adrenalina já corria por minhas veias, saboreei o cheiro de seu perfume o qual nem a fumaça do cigarro foi capaz de diluir.

— A grama tornando-se vermelha... — sua voz era suave. Em um movimento sedutor, ela se sentou em meu colo, mantinha as mãos sobre meus ombros. Suspirei desejoso ao agarrar-lhe a cintura. — o animal dando seu último uivo... — um arrepio dançou em meu pescoço com a vibração de sua voz próxima a minha pele, e voltou a me fitar com profundidade. — em um tiro que arrancou seu olho direito. Um ferimento fatal!

— Como sabe disso? — Surpreso encarei-a.

— Eu estava lá!

O sorriso dela se tornou maligno. Os olhos claros pareciam chamas azuladas a queimarem. Assustado e sem compreender o rumo louco daquela conversa, tentei empurrá-la para longe, mas uma dor lancinante atingiu meus ombros.

Horrorizado percebi o sangue escorrer por minha camisa quando suas unhas se tornaram garras e perfuraram minha pele. Antes que eu pudesse controlar, um grito ecoou no fundo de minha garganta ao me deparar com o rosto à minha frente. A delicadeza sumira, os olhos agora tinham um aspecto selvagem e os caninos se projetaram em um focinho de animal.

— O quê?! Deixe-me ir, por favor! — implorei como uma criança, ao tentar me soltar. Aquilo à minha frente não era humano.

Com um rosnado profundo, ela abocanhou meu pescoço com os caninos proeminentes tirando parte da carne, então se afastou. A dor causou-me tontura, mas eu não me deixaria desmaiar. Coloquei as mãos na ferida, meu próprio sangue escorria quente entre meus dedos.

Arrastei-me pelo chão em direção à porta. A chave não estava mais na maçaneta onde eu a deixara. Você está ferrado!, minha mente gritou. Em pânico, bati com os punhos na porta. Sem a chave, seria impossível. O prédio estava vazio nessa hora avançada. Por que aceitei atendê-la?

— Sabe, foi difícil encontrá-lo. — Ela sorriu largamente em gozo, ainda em sua forma meio-humana e meio-lobo.

O que faço? Tentava me manter acordado. Precisava pensar em um modo de escapar desse monstro com rosto de anjo. Minha chance estava em chamar a polícia. Arfando vasculhei meu bolso, com apenas uma mão, à procura do celular sem o encontrar. Meu coração gelou quando avistei Luna sorrir irônica ao mostrar sobre suas mãos a chave e o celular.

— Estou à sua procura há muito tempo. Um tempo adequado para ter aprendido a caçar, afinal. — Ela se levantou e veio até mim. Minha visão começava a embaçar, e sem forças, escorreguei as costas na porta até alcançar o chão.

— Por favor... — engasguei-me no meu próprio sangue. — Deixe-me ir...

— Você deu chance para meu pai? — O rosnado saído de sua garganta fez eu me encolher. — Oh, não! Você apenas atirou pelo prazer de matar, sem pensar nas consequências de seus atos. Usando de covardia, se achando muito macho com uma arma na mão.

— Peço perdão... — Minha voz saiu tremida. Tossi sangue. — Deixe-me ir, por favor... por favor... Deixe-me ir!

Sem dizer nada ela retornou ao estilo humano e meigo de garota de antes, limpou o meu sangue presente em seu rosto com a manga da blusa. Colocou a chave na porta e a abriu.

Sem perder tempo, usei-me das últimas forças para me erguer.
Vacilante, dei o primeiro passo em direção à liberdade. Se conseguisse chegar ao elevador, poderia descer até o porteiro que certamente me levaria ao hospital a poucas quadras de distância. Havia esperança. Sim, havia esperança.

Minha saída foi barrada por um jovem recém-saído da adolescência. Em desespero, agarrei-me à sua camisa em pedido de socorro. Mas, então, minhas últimas forças foram gastas em um grito horrendo ao perceber o brilho selvagem nos olhos dele.

— Seria egoísmo não dividir a caça com o irmão mais novo, não acha? — Ela sorriu vitoriosa ao lado da porta.

Antes que eu pudesse gritar novamente dois lobos brancos, que antes eram Luna e o garoto, me arremessaram no divã.

Meu sangue se misturou ao veludo rubro. Minhas entranhas foram abertas pelos caninos daquelas criaturas monstruosas, a vida se esvaiu. Pensei ser um predador, mas a verdade, agora eu sabia, eu não passava da presa.

Gostaram do conto? Essa história faz parte de muitas outras do Universo Solstícios de Sangue, ainda em construção. Outros textos de lobisomens na Amazon
Beijinhos, S. G. Conzatti. 

30 de dez. de 2018

Ponte: capítulo 1

dezembro 30, 2018 0 Comments
Os pés me carregavam pela estrada sem rumo ou objetivo. Os raios de sol, aos poucos, eram abocanhados pela noite. Sentia-me como o sol, incapaz de lutar contra a escuridão.
Para aonde ir? Para que respirar? Para que lutar? Para quê? O vazio era meu novo companheiro. Como Ana pôde fazer isso comigo? Destruir meu coração sem piedade?
Como um amor tão avassalador pôde virar indiferença? Ana, o que você fez com nossos planos? Você se esqueceu das juras de amor realizadas com o testemunho da lua?

Uma pedra no caminho recebeu meu desgosto ao ser chutada. Rolou para dentro do matagal sendo separada de suas outras irmãs. Os faróis de um carro me cegaram por instantes. Tossi por causa da poeira levantada da estrada de terra.

O que eu fazia aqui no meio do nada? Depois que tudo aconteceu, eu apenas corri. Deixei que meus pés me guiassem para o mais longe possível daquela cena.
Um suspiro choroso escapou dos meus lábios. Lembrar daquilo fazia cada parte minha estremecer. E nada mais de estrada, poeira, ou faróis, a única coisa que meu cérebro conseguia focar era a lembrança do rosto de Ana.

Não o rosto que amei por tantos anos, e sim o rosto de alguém que não parecia mais a minha Ana. Alguém que não compartilhava mais uma vida comigo e que, provavelmente, nunca mais compartilharia.
Nossa história era para ser contada em magníficos livros de romances. Não apenas meu coração sabia disso, todos a nossa volta concordavam. Ana e Anderson, o casal perfeito, que dava inveja a qualquer outro.

Nós éramos como um só. Havia tanto amor em apenas um olhar compartilhado, então os olhos de Ana simplesmente já não refletiam os meus.
O que acontecera com aquela paixão descontrolada que nos agarrou quando ainda éramos colegas de escola? Ela foi meu primeiro amor e eu o dela. Juntos descobrimos os sabores dos beijos, o calor das carícias, os prazeres de nossos corpos.

Éramos tão unidos que não precisávamos de mais ninguém. Quando estávamos tristes, era um ao outro que procurávamos. Se as novidades fossem felizes, eram nos mesmos braços que pulávamos empolgados. Nunca precisei de mais ninguém. E pensei que para ela fosse o mesmo.
Ao passarmos no vestibular para o mesmo curso, fizemos incontáveis planos para o nosso futuro. Então, depois de um semestre ela jogou tudo fora!

De repente, minha presença não bastava. Minha fala a incomodava e nossos beijos escassearam. Sem explicação, Ana pediu transferência para outra faculdade, consequentemente, outra cidade.
Tentei entender. Tentei dar espaço como ela pediu. Não liguei mais diariamente, mesmo que o impedimento de ouvir sua voz me brindasse com insônia. Fiz exatamente o que ela pediu, porque no fim eu sabia que uma história de primeiro amor como a nossa nunca chegaria ao fim.

Mas então tudo desmoronou. Cobri o rosto com as mãos, como se isso pudesse afastar a última imagem de Ana de minha mente. A respiração me faltou, minhas pernas perderam a força.
Cambaleante, como um bêbado, me arrastei pela estrada, deixei o corpo descansar nas pedras úmidas, grandes e cinzas de uma ponte antiga para pedestres com destino a uma comunidade do interior rural da cidade.

Sentado naquelas pedras frias, encolhi os joelhos contra meu peito. Tentei inspirar, o ar me faltava. A dor em meu peito só aumentou.

Por que fez isso comigo, Ana? 

Gritei para a lua parcialmente coberta pela névoa. A escuridão se intensificava. A estrada em que meus pés tocaram anteriormente já não era visível, e nem faróis esporádicos se aventuravam mais.
O olhar de indiferença de Ana, de quando nos cruzamos na rua, voltou a assombrar minha mente.

Nosso encontro não foi combinado. Ela estava na cidade há uma semana para visitar os pais, embora eu não soubesse disso naquele momento.
Ao avistá-la na rua na companhia da mãe, corri até ela. Pensei que ela estava ali para me fazer uma surpresa. Que talvez houvesse desistido das coisas sem sentido do último mês e que nossa perfeita história de amor seguiria o seu destino.

Suas mãos me afastaram como se eu fosse um pedinte. E a voz doce soltou o verbo ligeiro. Palavras sobre uma nova vida, sobre novos sonhos e coisas que eu não entendia.
Então as palavras se tornaram uma lança e atingiram meu coração. “Eu me apaixonei por outro”, ela comunicou. E quando me mantive estático, em choque, Ana completou: “Siga sua vida, Anderson. E não me procure mais”.

Seguir minha vida? Que vida? Você era minha vida!, sussurrei para a escuridão.

O vento gemeu em meus ouvidos, como se compartilhasse de minha dor. Abaixo da ponte, a água distante desaparecia entre a grossa névoa que mais e mais se aproximava. Seus braços fantasmagóricos começavam a me envolver. Um abraço gélido como a morte.
Prendi o ar e estiquei os pés para o nada branco, me entregaria ao fim.

— Águas profundas não são a resposta para nada. — Uma voz suave ecoou ao meu lado esquerdo.
O movimento impulsivo foi paralisado, meus dedos agarraram a borda da ponte com força. O olhar procurou a dona da voz com uma lentidão amedrontada. O coração disparado.

Meu olhar alcançou uma jovem com o rosto parcialmente encoberto pelo capuz do casaco, não muito mais velha do que eu, em pé ao meu lado com os braços apoiados na borda também contemplando a água.

De onde essa criatura veio? Observei ao redor. Nada de casas, carros, bicicletas ou qualquer indício de que havia algo nas redondezas.
Fechei os olhos ardidos por causa das lágrimas ácidas já derramadas, na dúvida se tal garota era real.
Seria o chamado da morte? Um fantasma?

— Não faça isso! — A voz feminina suplicou baixinho quando seus dedos gelados envolveram meu pulso, com mais força do que eu poderia imaginar, para então voltarem a se esconder nos bolsos do seu casaco.

O choque afastara meu impulso autodestruidor. Neste momento, aquela presença inusitada ganhara minha atenção. Um medo me dominou. E se ela fosse um ser sobrenatural à espera de minha fraqueza, para roubar minha alma? Será que histórias de vampiros eram verdadeiras?
Lentamente voltei para a segurança da ponte, mantive meu corpo afastado do da garota. Ponderava uma rota de fuga enquanto seus olhos encaravam os meus com intensidade. Era como se ela pudesse ler meu sofrimento.

— O que quer que tenha acontecido, você deve saber que as coisas sempre mudam. — Ela soltou ao vento sem virar seu rosto em minha direção.

— Como pode saber disso? — desafiei. Não aceitaria nenhum “contrato de sangue” e nem venderia minha alma.

Por que me importo? De repente percebi que há um minuto eu pretendia lançar minha vida ao nada. Não era o mesmo que desistir de minha alma?

— Só sei. — Então seus olhos prenderam-se aos meus. — Toda vida é preciosa.

— Nem toda. Algumas trazem apenas sofrimento. — Desviei o olhar e me reconectei com o buraco sangrento que Ana me infligira e que antes fora meu coração.

— Me dê uma chance de provar o contrário.

— Por que se importa? — resmunguei com vergonha ao dar um passo para longe dela.

— Você precisa de uma amiga — disse sem responder minha pergunta. Ela estendeu a mão em minha direção. — Me deixe ser essa amiga.

— Você nem me conhece! — Essa conversa era alucinação? E se eu já tivesse caído?

— Mas quero conhecer. — Um sorriso tímido, forçando simpatia se formou no rosto dela. — Você ia desistir de tudo. O que tem a perder ao me dar uma chance.

— Você quer me enganar? — Sobre o quê e como eu não sabia, mas tinha algo muito estranho nessa história toda. Ela negou veementemente com um aceno, enquanto seus olhos se mantinham fixo em mim com tristeza. — Tudo bem.

Aceitei sua mão e a acompanhei em silêncio pela estrada de terra para longe da ponte.
Meu coração já estava semimorto mesmo, Ana arrancara uma parte e eu sabia que nunca mais seria possível me livrar dessa dor. Mesmo assim me deixei ser levado pela garota misteriosa, pelo simples fato de que seria impossível abdicar de mim enquanto ela estivesse ali me olhando. E depois, por que não poderia morrer em paz enquanto não descobrisse quem era e como essa garota me encontrou ali.
 
 
Próximo capítulo (em breve)
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Beijinhos, S. G. Conzatti

29 de dez. de 2018

Fome: capítulo 1

dezembro 29, 2018 0 Comments
Primeiro Capítulo:

O trio de amigos se reunia na sorveteria, planejavam os últimos dias de férias antes que suas vidas se modificassem para sempre. Deixariam a segurança da pequena escola e se aventurariam nos imensos corredores da universidade.

Lipe insistia que a amizade seria a mesma, não importava se os cursos escolhidos eram diferentes. Nando se mostrava pessimista. Lucas os ouvia sem opinião, enchia a boca com o crepe quádruplo de queijo e calabresa. Desde que ele fizera dezoito anos, na semana anterior, sentia uma fome constante.
Seus amigos diziam que era hormonal, que eles também passaram por isso no período de crescimento, em anos anteriores. Mas Lucas discordava, tinha impressão de que sua fome estava relacionada à pressão por entrar na vida adulta.

Fazer medicina era seu sonho, e ter passado no vestibular e ainda conseguido uma bolsa parecia bom demais para acreditar. Até sua mãe, uma constante criatura assustada, sorria feliz nestes últimos dias. Era muita responsabilidade, e ele tinha medo de estragar tudo.

— Vejam o que consegui. — Nando jogou sobre a mesa três ingressos para o show de uma banda novata um bocado underground.

— Isso é perfeito para nosso último final de semana. — Lipe sorriu ao analisar os convites pretos com o nome da banda escrita em vermelho como se fosse sangue escorrendo.

— Eu havia combinado de ficar em casa com minha mãe — Lucas se pronunciou. Os amigos lhe lançaram um olhar de deboche, e ele suspirou condescendente. — Ok. Vamos ao show.

Deram-lhe tapinhas amigáveis nas costas ao saírem após combinarem o local de horário de encontro. Ir ao show seria interessante, o problema seria lidar com a frustração de sua mãe.

Os amigos não compreendiam por que ele deixava, com certa frequência, de sair com estes para fazer companhia à mãe. Mas como ele podia deixá-la sozinha com seus medos noturnos? Ela era uma mulher que vivia sobressaltada. Pessoas passando na calçada, ligações, entregadores a baterem na porta, ou apenas um animal pulando no quintal a assustavam de modo a trancar todas as portas e janelas e permanecer tremendo e rezando até o amanhecer.

Lucas perdera as contas de quantas vezes ele fora puxado pelo braço de maneira inesperada e arrastado para fora de um mercado ou uma loja por sua mãe ter visto alguém que lhe causasse pânico. O garoto acatava o gesto dela e lhe seguia silencioso para longe, por desconfiar que todo esse medo era resquício do sofrimento causado pela morte misteriosa de seu pai, quando Lucas era um bebê, a respeito da qual a mãe nunca falava.

Você precisa seguir sua vida! Não poderá mais cuidar da sua mãe, estará envolvido com a faculdade.

A voz em sua cabeça lhe avisava. Ao menos esperava que ao final da medicina tivesse capacidade técnica para curar esse medo crônico de sua mãe.

Ao chegar em casa abriu a porta com cuidado, sem fazer ruído. Usou-se de usa agilidade atlética bem desenvolvida para subir as escadas, passar pela porta do quarto da mãe e alcançar o seu próprio, sem acordá-la de seu descanso da tarde.

Trocou a roupa, tentou encontrar uma camiseta que combinasse com o clima underground do show, encontrou uma preta com a imagem de um zumbi que ganhara juntamente com o box da primeira temporada de Walking Dead em uma rifa da escola, há alguns anos.

Olhou-se no espelho e se achou ridículo, mas servia para o show. Provavelmente Lipe e Nando estariam ainda piores.

Antes de sair, fez um carinho no querido hamster ao aproximá-lo do rosto e beijar seu focinho, largou-o com cuidado sob a rodinha da gaiola e deslizou ligeiro e silencioso pelas escadas até a porta de entrada. Planejava escrever um bilhete para a mãe, mas percebeu-a acordada fazendo o jantar.

— Por Deus, Lucas! — A mãe botou a mão sobre o coração, ao perceber sua presença na porta da cozinha. – Por onde você veio? Não o havia visto.

— Pela escada e depois pelo corredor. — Lucas sorriu amigável. — O mesmo caminho de sempre.

— Não implique com sua mãe — ela o repreendeu. E ao observá-lo ergueu a sobrancelha. — Por que está com essa blusa horrível?

— Vou sair com Lipe e Nando, vamos a um show — ele respondeu de supetão e foi roubar alguns bolinhos de arroz já fritos.

— Pensei que veríamos alguns filmes, e... — Sua voz possuía um enorme desapontamento. Uma sensação de culpa se manifestou, contudo estava decidido a viver mais sua própria vida.

— Você ficará bem e eu ficarei bem. — Ele segurou sua mão, quando ela começou a tremer e derrubou um dos bolinhos fora da panela. — Estarei em casa antes das 23h. Não se preocupe.

— Você está certo. — Ela forçou um sorriso e soltou um suspiro aliviado. — Afinal você já fez dezoito, isso significa que nada de ruim vai acontecer, aquele homem estava errado.

— O quê? — Lucas a observou sem compreender. Minha mãe conversa com homens misteriosos?
Um terapeuta talvez.

— Não é nada. — Ela sorriu. — Você merece se divertir. — Ela lhe beijou a mão, ainda segura entre as dela e sorriu. — Vá, meu filho, e se divirta.

Ver a mãe envolta dessa aura de tranquilidade era raríssimo. Lucas agradeceu a sorte de ela estar em um bom dia. Acenou e saiu antes que o humor dela se transformasse e ele acabasse desistindo de sair com os amigos como fizera tantas vezes.
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Beijinhos, S. G. Conzatti

27 de dez. de 2018

Desafiando Vicente: capítulo 1

dezembro 27, 2018 0 Comments
(Conto de personagem do Clube da Árvore Solitária, presente na coletânea Ponte)

CAPÍTULO UM

O sol do final de verão atingia Vicente em sua potência, o jovem de dezesseis anos pingava de suor, no entanto ainda não entregaria os pontos e deixaria a pista de skate livre para o trio que o observava. Ele almejava acertar o salto duplo pelo menos duas vezes seguidas antes de desistir, apenas assim teria chance de entrar na competição amadora de skate que ocorreria na próxima semana.

Caiu mais uma vez acrescentando novos arranhões aos seus braços já esfolados, e causando as risadas dos observadores. Vicente ajeitou bruscamente seu skate embaixo do braço e finalmente se convenceu de que hoje não seria o dia no qual conseguiria realizar com perfeição um salto duplo, quanto mais dois.
Cabisbaixo, Vicente se afastou da pista. Observou de relance os jovens que agora ocupavam a pista, eles pareciam voar e desafiar qualquer Lei da Física, enquanto iam de um lado para outro realizando piruetas e saltos magníficos. Quando ele conseguiria ser assim tão bom?

A esperança de alcançar seu máximo até o final das férias e entrar no torneio, e quem sabe, se tornar um skatista profissional, esvaía-se aos poucos.
Em poucos dias ele deveria abandonar a casa da avó e retornar para o caos da vida real. O lugar onde Vicente morava durante o restante do ano, em companhia do pai, era solitário e tumultuado.

Seu pai pouco permanecia em casa e quando o fazia, ele e Vicente viviam como cão e gato. Talvez por terem gênios fortes e teimosos, ou talvez porque ambos ainda estivessem abalados com a partida da mãe de Vicente. A mulher não aguentava permanecer em um mesmo lugar por muito tempo: um espírito-livre e rebelde, como sua avó chamava a filha. Destas duas coisas Vicente entendia, pois se algo ele adquiriu de sua mãe, fora essas mesmas duas características. Se queria vê-lo transtornado bastava proibi-lo de passar seu tempo livre zanzando pela rua, não importava onde ele iria, ele apenas precisava sentir o vento.

Apesar de compreender a sensação, isso não o impedia de se sentir uma hora magoado, outra hora com raiva por ter sido deixado para trás. Mas ele evitava pensar nessas coisas, não era de perder tempo com lamentos. O que aconteceu já aconteceu, a vida devia continuar.
Na frente da casa da avó, Vicente parou por um instante, tentou arrumar sua bermuda e camiseta de maneira que parecesse um pouco mais um “netinho querido”, e menos um moleque esfarrapado.
Com a roupa ele até conseguiu um resultado quase satisfatório, se ignorássemos as manchas de barro, no entanto os arranhões dos braços e joelhos não tinham maneiras de esconder.

Vicente abriu a porta da varanda dos fundos espiando para dentro com esperança de não ser visto pela avó e assim poder correr até o quarto para catar uma roupa que melhor tapasse seus novos ferimentos.

— Vicente! — Sua avó chamou animada, infelizmente ela preparava um lanche e o viu entrar pela porta dos fundos. — Vem, querido! Fiz torradas.

— Vou me trocar primeiro.

Ele tentou passar ligeiro por ela com os braços escondidos nas costas, após dar dois passos a voz rouca de sua avó se pronunciou preocupada.

— Querido! Você está todo arranhado! — Ela o encarou fazendo sinal para ele se aproximar, com o objetivo de poder analisar melhor. Vicente obedeceu envergonhado. — Eu não devia ter comprado esse negócio com rodinhas para você. É um brinquedo perigoso!

— É um skate, e não um brinquedo! — Vicente resmungou contrariado ao se sentar na cadeira da sala à espera que a avó trouxesse a caixa onde ela guardava ataduras, merthiolate e outras coisas para emergência. — É um esporte radical, têm até Competições Internacionais.

— Um esporte? — Sua avó questionou incrédula ao derramar o merthiolate sobre o joelho de Vicente. Ele confirmou com seriedade. Ela riu. — Bem, se diz que é, eu acredito. Mas, Vicente, é tão perigoso! Não prefere fazer natação? Já contei que seu avô foi campeão de nado borboleta juvenil? Ele...

Vicente suspirou impaciente esperando que sua avó contasse novamente toda a história de como o avô era bom nadador enquanto enchia as pernas e braços dele com enormes gazes e esparadrapos.
Curativos que ele se livraria assim que alcançasse o quarto. Por mais que a avó fingisse não ver, ele não era mais um garotinho para andar pela rua como uma múmia cheia de pedaços de panos.

Sem contrariar a avó, Vicente comeu suas torradas. Fingia ouvir os últimos detalhes de como seu avô conseguiu superar seu adversário por ter uma técnica avançada de respiração, enquanto na sua mente ele repassava os movimentos necessários para seu salto duplo, como se isso ajudasse seu corpo virar e revirar no momento certo.

Na teoria ele sabia tudo o que precisava ser feito, mas ainda não conseguira atingir o tempo exato que lhe permitisse cair sobre o skate ao invés de ficar estirado no chão.

Leia o próximo capítulo (em breve)
Beijinhos, S. G. Conzatti

25 de dez. de 2018

Trocado para Eduarda: capítulo 1

dezembro 25, 2018 0 Comments
(Conto com personagem do Clube da Árvore Solitária, presente na coletânea Ponte)
 
Capítulo Um
 
Passar os dois meses de férias de verão na praia pode ser o desejo de qualquer jovem, no entanto para Eduarda era apenas uma chata rotina de trabalho. Aos dezesseis anos, ela queria poder esticar uma toalha na areia e bronzear sua pele, enquanto observasse os banhistas passarem, mas sua realidade era bem diferente.

Todo o verão, sua mãe, uma ocupada doceira, resolvia aproveitar a temporada para aumentar o orçamento apertado de todo o ano, e alugava à beira-mar uma barraquinha de churros e crepes. Deste modo, Eduarda passava o verão servindo lanches, entregando trocos e cozinhando saborosos recheios a serem colocados dentro da máquina de churros.

Desanimada, ela pegou a nota de cinquenta reais que uma cliente lhe estendia. Olhou o caixa, frustrada, por não ter dinheiro suficiente para lhe devolver o troco.


— Mãe! — Eduarda chamou, nem precisou levantar a voz, pois a barraca era minúscula, mãe e filha tropeçavam uma na outra todo o tempo. — Estou sem troco!
Sua mãe esticou os olhos para o caixa, equilibrando numa das mãos dois churros e na outra a jarra com a massa do crepe.

— Filha, tente trocar o dinheiro nas outras barracas.

Resmungando para si, Eduarda abandonou a barraquinha com a nota de cinquenta reais presa entre os dedos. Passar nas barracas vizinhas era o que ela mais odiava de suas tarefas de ajudar a mãe no verão.

A mulher suada da banca de pastéis olhou torto para Eduarda quando esta lhe mostrou a nota, e num aceno mal-humorado deixou claro que não estava interessada em realizar tal troca. Eduarda tentou também com o bigodudo da banca de peixes, com o velho estranho da banca de cachorro-quente, sem sucesso algum.

Ela estava convencida a retornar para a sua banca e informar à cliente que desistisse de comprar um churro. Afinal, a mulher podia ir lanchar no restaurante do hotel, se possuía na carteira só notas altas. Eduarda pensou com raiva.

— Menina dos churros! — Uma voz a chamou, ela virou-se em reflexo, pois durante todo o verão esse praticamente passara a ser seu nome. Com certeza isso não lhe agradava, mas ainda era melhor do que os apelidos que normalmente lhe acompanhavam na escola. — Eu tenho notas trocadas.

Ela sorriu aliviada ao perceber que a mulher de longas tranças rastafáris da banca de sucos naturais acenava para ela. Correndo, Eduarda atravessou a rua para ir ao encontro de sua salvadora. Ela nunca fora na banca de sucos naturais, por ser do outro lado da rua e por ela não ser uma grande adepta de frutas.

— Obrigada! — Eduarda se adiantou ao estender o braço com a nota já um pouco amarrotada de tanto sacudir em direção aos outros comerciantes. — Achei que não conseguiria trocar!

— Hoje é seu dia de sorte! — A mulher riu fazendo seus enormes brincos tilintar com o movimento de sua cabeça. — Pode ser tudo em notas de cinco?

— Claro!

— Bob! — A mulher gritou para os fundos da banca.

Por trás de uma cortina colorida que ocultava a cozinha da barraca, um garoto alto e magro apareceu, segurando um saco de laranjas.

— Pô, mãe, estou fazendo o suco. O que quer?

— Olha a língua! — A mulher riu. — Traz dez notas de cinco do esconderijo, a menina dos churros precisa de troco.

— Ah! — O garoto olhou por um tempo para Eduarda, confuso. Então sorriu maroto. — Trago num instante!

Com as pernas já cansada, ela se escorou no balcão enquanto esperava, Bob fora rápido em surgir a sua frente sacudindo várias notas de cinco, como quem ganhou algum ingresso importante e quer mostrar a todos.

— Prontinho! — Ele riu ao estender as notas para ela. — Se precisar de troco novamente é só vir aqui.

— Obrigada.

Acanhada ela acenou para Bob e para a mãe dele, que sorriu simpática. Com passos largos ela tratou de retornar para a chatice de sua barraca.
Sua mãe deveria estar desesperada à espera do troco, contudo fora a sensação engraçada sentida por Eduarda que lhe fez querer se afastar daquela banca de suco, onde havia um rapazinho magro e alto que ainda acompanhava seus passos com olhar curioso.

Leia o próximo capítulo (em breve)

Beijinhos, S. G. Conzatti

21 de dez. de 2018

O Sangue

dezembro 21, 2018 0 Comments
Rodeada de flores coloridas, ervas cheirosas e pequenas árvores frutíferas, Annie se sentou na longa poltrona de madeira forrada com pelos de carneiro. As mãos trêmulas seguravam com dificuldade o pequeno livro, enquanto o fogo estalava na lareira aquecendo a estufa Real.

Apesar de ser uma princesa do Reino do Leste, era a quinta filha entre seis irmãs e dois irmãos; isso, somado à fragilidade de seu sangue, a descartava de futuros arranjos políticos através de um casamento, sendo assim ela era livre das obrigações e dos interesses Reais.

Dispensar as tardes com leituras de poesia e filosofia na estufa era-lhe então possível, enquanto seus irmãos e irmãs se ocupavam com os mais diversos tutores em lições entediantes de política, economia e bons costumes.

O estrondo seco da porta da estufa sendo aberta às pressas e o vento frio fez Annie fixar o olhar assustada na entrada a tempo de avistar um vulto correr entre as plantas e se ocultar num dos cantos escuros.

O livro lhe caiu da mão, sua respiração parou por alguns segundos, assim como seu coração. Pensou em fingir não ter acontecido nada. Talvez fosse apenas sua imaginação, tentou se convencer. Porém, sua visão periférica lhe gritava em alerta de que o vulto ainda estava lá.

Usando-se da misera coragem restante em suas veias, ela se enrolou em uma manta e andou com passos inseguros pela estufa até próximo ao vulto escondido. Seu coração disparava a cada passo dado. Avistou olhos azuis acinzentados como nas noites de tempestades em um rosto oculto pelo capuz de uma capa marrom, sem poder controlar o susto Annie soltou um grito agudo.

— Eu não vou machucá-la. — Aos poucos o vulto se levantou e veio à luz. O jovem a encarava em súplica ao estender as mãos para demonstrar que não era uma ameaça. — Deixe-me ficar aqui, apenas um pouco, até...

Passos agitados e o barulho ritmado das botas de couro e das armaduras laminadas dos guardas Reais ecoaram do lado de fora. A porta da estufa foi aberta por um dos guardas com violência, Annie deu um pulo e pôs a mão no coração. Pela visão periférica, ela percebeu quando o invasor desconhecido escapuliu novamente para o escuro.

— Alteza, desculpe incomodá-la — o guarda disse ao reverenciá-la, ele parecia agitado. — Estamos à procura de um fugitivo. Talvez ele tenha se escondido na estufa.

— Fugitivo? — Ela puxou a manta sobre o peito para afastar o frio e esconder seu nervosismo manifestado em estranhos tremores.

— É um mago perigoso. Seria enforcado, mas enganou nosso carrasco e desapareceu. — O guarda fez sinal para os outros que esperavam ao lado de fora com espadas em punho para entrarem e iniciarem a busca.

— Não há nenhum mago aqui, senhor — ela disse com o máximo de firmeza possível, tentava não entregar o esconderijo com o olhar. De repente contrariar a guarda Real soou como uma aventura de livro e ela não pôde evitar. Uma tosse seca lhe escapou. — Seus homens estão deixando o vento esfriar meu refúgio. Saiam! — ela ordenou em sua pose de princesa, raramente usada por uma criatura tão frágil como ela. — Ou serão responsáveis por me deixar mais doente.

Ao ponderar a fala da princesa, o guarda solicitou aos outros que saíssem e se desculpou com uma reverência ao fechar a porta. Ela podia não ter lá muita importância para o casal Real, contudo ninguém desejaria levar a culpa por ter acelerado sua morte.
Annie abafou mais uma tosse e respirou aliviada. Olhou para o canto escuro:

— Está seguro agora, fugitivo.

— Obrigado, Alteza. — Ele se aproximou alguns passos e se ajoelhou aos pés dela com a cabeça baixa.

Ela achou graça, recebia poucas genuflexões. Fez sinal para ele se levantar e a acompanhar. Ofereceu ao invasor os pães e queijos restantes na bandeja do almoço. Enquanto este saciava a fome, ela aquecia as mãos à frente da lareira.

O fugitivo a observou com o canto dos olhos e ela fez o mesmo. Pensava o que faria a seguir, afinal arriscara sua segurança ao escondê-lo e não tinha certeza de como ele poderia sair do Reino do Leste. 
Teria errado em acobertar um fugitivo? E se ela corresse perigo? As ideias estralavam em sua mente como o fogo a aquecer suas mãos.

— Alteza. — A voz masculina e jovem a convocou, enquanto os olhos acinzentados a observavam curiosos. — Por que me salvou?

— Enforcamentos me dão náusea. — Ela sorriu ao encará-lo. Isso era verdade, mas esse era o motivo?, perguntou-se em silêncio. Então desviou o olhar. — Ainda mais por superstições tolas.

— Então acredita que eu seja inocente das acusações? — O rapaz a encarou surpreso. — Será a primeira neste reino.

— Meu povo é supersticioso! Mas não eu. — Ela sorriu ao soltar a manta sobre a poltrona, quando se sentiu aquecida novamente pelo fogareiro. — Um dragão ser visto rondando o céu no mesmo dia em que chegou ao reino é apenas uma coincidência. Não faz de você um encantador de dragões que deseja arruinar o reino.

— Vossa Alteza é sábia. — Ele sorriu ao reverenciá-la. — Mesmo assim, ainda sou um fugitivo. Por que se preocupar em ajudar-me?

— Seus olhos me dizem que seu coração é bom — soltou sincera em um sussurro. — E não posso concordar que possuidores de bons corações sejam enforcados por estarem no lugar e na hora errada.

— Serei eternamente grato à Vossa Alteza!

— Dei-lhe uma chance de ter mais uma noite de vida. — Ela o fitou com pesar. — Mas não posso lhe garantir outra ou uma rota de fuga.

— Deu-me o necessário. — O rapaz sorriu-lhe, uma fileira de dentes brancos alinhados se mostrou. 

— Ao amanhecer partirei com cuidado, talvez tenha sorte em retornar ao meu lar salvo.

— Talvez.

A tosse e a fraqueza lhe tomaram conta, fazendo-a se arquear para frente. As mãos do rapaz a ampararam e a ajudaram a se deitar sobre a poltrona.

— Vossa Alteza não parece bem.

— Nada diferente de simples rotina.

Ela sorriu na tentativa de afastar o olhar de pena de si. Estes eram frequentes e a incomodavam tanto que preferia se refugiar na adorável estufa. Estava acostumada com sua solidão, interrompida apenas pela aia que vinha trazer-lhe comida três vezes por dia e algumas visitas do curandeiro para averiguar o avanço de sua doença.

— Vossa Alteza será curada. — Ele sorriu ao lhe oferecer um copo de água. — O reino tem grandes curandeiros.

— Meu sangue é doente, os curandeiros nada podem fazer. — Os olhos acinzentados lhe fitaram tristes. Ela lhe sorriu conformada. — Esta é minha vida, estou acostumada a ela. Não tem importância. — E riu irônica. — Diante das circunstâncias, talvez eu viva mais do que você.

— Bom argumento. — Ele fitou-a divertido. — Mas tenho certeza desta noite de vida. Então deixemos de nos preocupar com o amanhã, por enquanto.
Annie consentiu com um aceno. O rapaz pegou um dos livros deixados ao lado da poltrona e o analisou. Os lábios dele se abriram surpresos ao observar as poesias, e citou outras do mesmo autor. 

A princesa se surpreendeu pelo conhecimento do intruso, esses eram livros trazidos de muito longe, presentes de uma de suas irmãs quando se casou com o príncipe do Sul. E se deixou relaxar sobre a poltrona enquanto o estranho de olhos acinzentados lia em voz alta trechos dos livros deixados na estufa.

As duas luas reinavam no céu há um longo tempo e informavam à princesa que era hora de se retirar aos seus aposentos Reais. Seria mais seguro ao visitante que ela saísse da estufa logo, antes que a aia viesse chamá-la.
Interrompeu a leitura do rapaz ao se levantar. Ele a fitava atento ainda com o livro aberto nas mãos, enquanto ela lhe informava sua saída.

— Desejo-lhe uma boa-noite — ela disse com um sorriso tímido nos lábios. — E que sua fuga seja bem-sucedida.

Após um aceno, ela virou em direção à porta. O rapaz segurou sua mão, surpreendendo-a.

— Agradeço novamente sua gentileza em me salvar. — Ele se aproximou com os olhos atentos a ela. 

— Demonstrou ser mais do que uma simples princesa. Seu coração é bom. Por isso, eu lhe concederei um presente.

Enquanto Annie tentava compreender as palavras, os lábios do rapaz selaram os seus. Neste momento, não houve mais pensamentos, apenas o desejo daquele beijo. Um beijo proibido entre uma princesa e um fugitivo, mas um beijo ansiado desde que seus olhos se cruzaram com os azuis acinzentados no canto escuro da estufa.

Ela o envolveu com os braços e os lábios se tornaram urgentes. As mãos do fugitivo apertaram suas costas, pressionando-a sobre seu corpo. O ar faltou-lhe, tentou escapar daquele abraço cruel em vão. Apavorada, fitou pela última vez os olhos acinzentados antes de apagar.

***
Ao amanhecer, Annie acordou em um sobressalto. Estava deitada na poltrona enrolada em sua manta. Olhou para os lados, mas não havia nenhum sinal do misterioso rapaz. Sentou-se enquanto decidia se fora ou não um sonho. Ela mantinha seu olhar furtivo pela estufa. Sentiu o braço latejar dolorido, ao erguer a manga do vestido percebeu um rasgo em seu braço de um ferimento parcialmente coagulado. Confusa, olhou novamente ao redor. O que aconteceu?

Sobre o livro de poesia havia um bilhete. Pegou-o com receio.

“Perdoe-me pelo ferimento, mas era a única maneira de lhe oferecer um pouco do meu sangue de mago, o que irá curá-la. Ao final, algumas superstições se mostram verdadeiras, mesmo que julgadas erroneamente pela maioria. Adeus, Alteza.”

Ela guardou o bilhete dentro de um livro e sorriu sem mais tosses ou cansaço. Guardaria, por décadas, o brilho dos olhos azuis acinzentados que lhe tocou o coração e lhe deu uma nova vida.

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Beijinhos, S. G. Conzatti

24 de nov. de 2018

Sem mas...

novembro 24, 2018 0 Comments
Você é bonita, mas está acima do peso.
Isso que você fez foi lindo, mas por que não tenta mudar esse detalhe.
Não tenho nada contra gays, mas eles deviam se agarrar em casa.
Não sou racista, mas que cabelo é esse?
MAS é uma conjunção adversativa, ou seja, faz contradição a ideia da frase anterior.
Sempre que um elogio vem seguido de MAS, ele perde sua função de elogio e se torna uma crítica.
Sempre que você quer parecer legal, contudo completa a fase com um MAS você apenas está demonstrando todo o seu preconceito verdadeiro.
Vamos pensar sem mas.
Vamos elogiar as pessoas com sinceridade.
Vamos ver o que elas têm de bom, sem precisar relembrá-las de algo que achamos ruim.
Vamos assumir nossos preconceitos, só assim podemos trabalhar em mudá-los.
Se você não consegue se livrar do mas em sua fala, então fique quieto.
Não se finja de legal, pois o MAS entrega a sua verdade.
Muitos anos eu vivi rodeada de MAS, agora decidi dar um basta.
Decidi ignorar os MAS ditos e riscar os MAS de minha fala.
Por um mundo sem MAS onde todos se aceitem com são.


Quais os MAS de suas vidas? 
Beijinhos, S. G. Conzatti

Me convenceram a acreditar

novembro 24, 2018 0 Comments
Começou com notícias inocentes,
Diariamente mostravam sangue em minha TV,
Diariamente traziam imagens de violência.
Diariamente falam que a economia afundaria,
Diariamente apontavam a necessidade de reformas;

De tanto acompanhar a TV comecei a ter medo.
Acreditei que aquilo era a realidade total,
Acreditei que existe só maldade no mundo
Acreditei que as reformas eram necessárias.
Acreditei que os “poderosos” sabiam o que faziam.
Acreditei que eles queriam o nosso bem.

Recheada de medo, achei certo quando expulsaram os imigrantes,
afinal eles roubavam nossos empregos.
Achei certo quando metralharam manifestantes,
afinal eles traziam o caos.
Achei certo quando proibiram “fake news”,
afinal o governo sabe o que é verdade, não é?
Achei certo quando deixei de ter direitos trabalhistas e não ganhar aposentadoria,
afinal o povo precisa ajudar o país economicamente.
Fiquei feliz pelo governo e a mídia me protegerem deste mundo horrível.

E no fim me vi prisioneira e com mais medo.
Agora tenho medo de opinar e ser presa.
Tenho medo de lutar por meus direitos e ser metralhada.
Tenho medo de precisar ir para outro país e ser expulsa.
Tenho medo de perder meu ganha pão, mesmo que seja indigno.
Tenho medo de adoecer, afinal preciso trabalhar até morrer.
Tenho medo da miséria que bate á minha porta.
Tenho medo do futuro.

Mas me fizeram acreditar que sou cidadã de bem por ter apoiado tudo.
Acreditei quando me disseram que queriam um país melhor.
Apenas não percebi era um país melhor para eles.
Um país no qual eles continuassem a aumentar seus milhões.

Mas tive medo e por isso foi fácil me manipular.

Hoje,  ao menos, não acredito mais no que me fizeram acreditar.  

S.G. Conzatti.

7 de mai. de 2018

Book Trailer e Prólogo: Jovem Amor

maio 07, 2018 0 Comments
Assista o Book Trailer
do e-book  Jovem Amor
 
Uma degustação do livro!
Leia o prólogo... 
Ao avistar Emily magnífica, com um jeito mais de mulher amadurecida do que de menina como na última vez que a vi, meu coração disparou e todos os sentimentos adormecidos retornaram com intensidade. O tempo não era cronologicamente grande, porém era evidente que havíamos mudado.
Desejei beijá-la no saguão do aeroporto e jogá-la sobre as malas que estavam no carrinho, contive-me indeciso com um largo sorriso de felicidade no rosto, à espera de sua reação ao ver-me. Primeiramente ela olhou-me com um sorriso tímido, escasso de raiva, e logo após abraçou-me com intensidade, transparecendo a saudade. Retribuí seu gesto da mesma forma.
Vê-la acalorou-me por completo. Quis desesperadamente retornar ao passado e fazer tudo certo desta vez, mas não era possível, teria que recomeçar daqui.
Ela sorriu educadamente, ajudando-me com as malas. Nossos olhos cruzavam-se confusos, a sensação de estar ao lado dela novamente sem poder tocá-la era estranha, assim como no começo de nossa história. Será que acabaria assim: Um distante do outro apesar de querermos ficar perto? Nosso grande amor sucumbira aos erros mútuos? Eu desejava profundamente ter uma segunda chance e, se a tivesse, me esforçaria ao máximo para que nosso amor sobrevivesse a todas as dificuldades.
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