Divã Vermelho- conto
S. G. Conzatti
dezembro 31, 2018
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A chuva torrencial escorria pela grande vidraça do consultório. Observei os faróis a alguns andares abaixo ao esperar minha última paciente da semana, Srta. Luna Missio. Aceitara atendê-la fora do horário, no avançado da noite, pois era difícil dizer não a uma criatura tão formosa.
Um suspiro cansado ecoou de minha garganta, passei os dedos pelo cabelo salpicado dos primeiros fios brancos. Nesse exato momento meu único desejo era relaxar na banheira ao som de música clássica enquanto fumava um cigarro.
O silêncio se interrompeu por duas batidas suaves na porta, a espera acabara. A jovem entrou no consultório retirando o longo casaco encharcado pela chuva, sacudiu os cabelos louros e encarou-me de modo enigmático.
— Continuamos de onde paramos na sessão anterior?
— Como desejar, senhorita.
Convidei-a com um gesto a se deitar no divã vermelho de veludo e sentei em minha cadeira habitual de psicanalista mais atrás. Discreto, vasculhei minhas anotações da sessão anterior, à procura da primeira de Luna. Entre tantos pacientes, às vezes, era difícil recordar as particularidades de cada um. “Em luto pela morte do pai” foram as únicas palavras escritas por mim, mas seriam suficientes para retomar.
Luna respirava lentamente observando a água escorrer pelo vidro da janela. Na sessão anterior foi o mesmo. Ela tinha seu próprio tempo para começar e eu paciência para esperar.
— Sinto falta de caçar com meu pai. — ela soltou em um suspiro pensativo sem desviar o olhar da chuva.
— É o que mais sente falta? — observei na tentativa de compreender sua dor.
— Uma caçada foi nosso último momento juntos. Meu pai era o melhor caçador de nosso grupo — Luna respondeu com força, indicava mágoa. Seu olhar me analisou em silêncio.
Senti-me incomodado, tinha uma espécie de fogo naqueles olhos claros, um misto de raiva e desejo.
— Como se sente sobre isso?
Ela desviou o olhar novamente para a chuva. A aceleração do movimento de sobe e desce de seu peito me mostrou sua tristeza. Minha intuição treinada me dizia haver algo não dito. Fatigado, passei a mão nos cabelos à espera da resposta.
Observei-a de relance, ela possuía uma pálida beleza intrigante, com cabelos e cílios claros quase brancos e olhos azuis como piscinas. Os lábios vermelhos contrastavam com o resto monocromático, constantemente sérios. A jovem tinha uma sensualidade natural, como se todos os movimentos, desde sua respiração e o modo como olhava melancólica a chuva, me convocasse a tocá-la.
Rapidamente desviei o olhar, havia cometido alguns erros no passado ao me envolver com mulheres jovens. Erros que custaram meu casamento e quase a perda de minha licença, não erraria novamente.
— Dr. Machado, você já caçou? — Inesperadamente ela me fitou em clara fuga da pergunta anterior.
— Estamos aqui para compreender você, não para falar de mim — disse no automático profissional, embora começasse a suar frio quando ela mordeu o lábio inferior. Meu olhar focou os ponteiros do relógio na parede imaginando se aguentaria manter escondido meu impulso predatório até o fim da sessão.
— Queria saber sua resposta. — Ela girou o rosto, me encarando enigmática. Ajeitei-me na cadeira, desviei o olhar para minhas anotações. Aqueles olhos translúcidos dificultavam minha luta interna em manter-me profissional. — Então, Dr. Machado, você já caçou alguma vez? — Ela se sentou no divã, mantendo seu olhar no meu.
— Não é um costume. — Engoli em seco, confuso se a forçava a retornar para suas questões ou mantinha essa linha de conversa. Ela mordeu os lábios em espera, isso me desarmou completamente.
O terapeuta desaparecera e o modo homem entrou em ação. — Participei, a alguns anos, de uma caçada a porcos selvagens com uns amigos.
— E como foi? — Os olhos dela me focaram com intensidade enquanto ela ia em direção ao seu casaco úmido, que fora pendurado no cabide atrás da porta, e retirava um maço de cigarros do bolso.
— Emocionante — respondi acompanhando-a com o olhar. Luna retirou um cigarro do maço ao sorrir discretamente. — Você não pode fumar aqui — relembrei-a ao girar a cadeira em sua direção, ela mordiscou a ponta do cigarro em um meio sorriso ao ignorar minha proibição. O flerte estava cristalino, e eu o aceitei com deleite. — Encontramos um lobo branco — comentei na tentativa de salientar minha masculinidade. — Você vai dizer que é mentira. Lobos não deviam existir na América do Sul, mas ele estava lá.
— E você o pegou?
— Sim. — Minha respiração parou quando ela se inclinou e manteve seus olhos emparelhados aos meus, sua mão retirou do bolso de meu casaco meu isqueiro. Quero tocá-la! Pigarreei. — Não conte isso para ninguém. Provavelmente ter um tapete de lobo deve ser ilegal. — tentei me exibir para ela.
— Um tapete! — Séria, ela ergueu a sobrancelha ao acender o cigarro.
Sorri sedutor ao acenar positivamente. Quem sabe poderia convidá-la para ver o tapete? Que coisas inomináveis faríamos sobre ele! Soltei um longo suspiro.
— O senhor tem muitos segredos, Dr. Machado. — Ela deixou o cigarro dançar entre seus dedos, para depois o apagar em minha mesa de madeira. Abri a boca chocado decidido a repreender seu ato de rebeldia. Contudo, ela apoiou a mão em meu ombro e eu apenas me calei. — Sentiu-se poderoso ao matar o lobo, não é?
— Com certeza! — respondi com força. A adrenalina já corria por minhas veias, saboreei o cheiro de seu perfume o qual nem a fumaça do cigarro foi capaz de diluir.
— A grama tornando-se vermelha... — sua voz era suave. Em um movimento sedutor, ela se sentou em meu colo, mantinha as mãos sobre meus ombros. Suspirei desejoso ao agarrar-lhe a cintura. — o animal dando seu último uivo... — um arrepio dançou em meu pescoço com a vibração de sua voz próxima a minha pele, e voltou a me fitar com profundidade. — em um tiro que arrancou seu olho direito. Um ferimento fatal!
— Como sabe disso? — Surpreso encarei-a.
— Eu estava lá!
O sorriso dela se tornou maligno. Os olhos claros pareciam chamas azuladas a queimarem. Assustado e sem compreender o rumo louco daquela conversa, tentei empurrá-la para longe, mas uma dor lancinante atingiu meus ombros.
Horrorizado percebi o sangue escorrer por minha camisa quando suas unhas se tornaram garras e perfuraram minha pele. Antes que eu pudesse controlar, um grito ecoou no fundo de minha garganta ao me deparar com o rosto à minha frente. A delicadeza sumira, os olhos agora tinham um aspecto selvagem e os caninos se projetaram em um focinho de animal.
— O quê?! Deixe-me ir, por favor! — implorei como uma criança, ao tentar me soltar. Aquilo à minha frente não era humano.
Com um rosnado profundo, ela abocanhou meu pescoço com os caninos proeminentes tirando parte da carne, então se afastou. A dor causou-me tontura, mas eu não me deixaria desmaiar. Coloquei as mãos na ferida, meu próprio sangue escorria quente entre meus dedos.
Arrastei-me pelo chão em direção à porta. A chave não estava mais na maçaneta onde eu a deixara. Você está ferrado!, minha mente gritou. Em pânico, bati com os punhos na porta. Sem a chave, seria impossível. O prédio estava vazio nessa hora avançada. Por que aceitei atendê-la?
— Sabe, foi difícil encontrá-lo. — Ela sorriu largamente em gozo, ainda em sua forma meio-humana e meio-lobo.
O que faço? Tentava me manter acordado. Precisava pensar em um modo de escapar desse monstro com rosto de anjo. Minha chance estava em chamar a polícia. Arfando vasculhei meu bolso, com apenas uma mão, à procura do celular sem o encontrar. Meu coração gelou quando avistei Luna sorrir irônica ao mostrar sobre suas mãos a chave e o celular.
— Estou à sua procura há muito tempo. Um tempo adequado para ter aprendido a caçar, afinal. — Ela se levantou e veio até mim. Minha visão começava a embaçar, e sem forças, escorreguei as costas na porta até alcançar o chão.
— Por favor... — engasguei-me no meu próprio sangue. — Deixe-me ir...
— Você deu chance para meu pai? — O rosnado saído de sua garganta fez eu me encolher. — Oh, não! Você apenas atirou pelo prazer de matar, sem pensar nas consequências de seus atos. Usando de covardia, se achando muito macho com uma arma na mão.
— Peço perdão... — Minha voz saiu tremida. Tossi sangue. — Deixe-me ir, por favor... por favor... Deixe-me ir!
Sem dizer nada ela retornou ao estilo humano e meigo de garota de antes, limpou o meu sangue presente em seu rosto com a manga da blusa. Colocou a chave na porta e a abriu.
Sem perder tempo, usei-me das últimas forças para me erguer.
Vacilante, dei o primeiro passo em direção à liberdade. Se conseguisse chegar ao elevador, poderia descer até o porteiro que certamente me levaria ao hospital a poucas quadras de distância. Havia esperança. Sim, havia esperança.
Minha saída foi barrada por um jovem recém-saído da adolescência. Em desespero, agarrei-me à sua camisa em pedido de socorro. Mas, então, minhas últimas forças foram gastas em um grito horrendo ao perceber o brilho selvagem nos olhos dele.
— Seria egoísmo não dividir a caça com o irmão mais novo, não acha? — Ela sorriu vitoriosa ao lado da porta.
Antes que eu pudesse gritar novamente dois lobos brancos, que antes eram Luna e o garoto, me arremessaram no divã.
Meu sangue se misturou ao veludo rubro. Minhas entranhas foram abertas pelos caninos daquelas criaturas monstruosas, a vida se esvaiu. Pensei ser um predador, mas a verdade, agora eu sabia, eu não passava da presa.
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Beijinhos, S. G. Conzatti.