21 de dez. de 2018

O Sangue

Rodeada de flores coloridas, ervas cheirosas e pequenas árvores frutíferas, Annie se sentou na longa poltrona de madeira forrada com pelos de carneiro. As mãos trêmulas seguravam com dificuldade o pequeno livro, enquanto o fogo estalava na lareira aquecendo a estufa Real.

Apesar de ser uma princesa do Reino do Leste, era a quinta filha entre seis irmãs e dois irmãos; isso, somado à fragilidade de seu sangue, a descartava de futuros arranjos políticos através de um casamento, sendo assim ela era livre das obrigações e dos interesses Reais.

Dispensar as tardes com leituras de poesia e filosofia na estufa era-lhe então possível, enquanto seus irmãos e irmãs se ocupavam com os mais diversos tutores em lições entediantes de política, economia e bons costumes.

O estrondo seco da porta da estufa sendo aberta às pressas e o vento frio fez Annie fixar o olhar assustada na entrada a tempo de avistar um vulto correr entre as plantas e se ocultar num dos cantos escuros.

O livro lhe caiu da mão, sua respiração parou por alguns segundos, assim como seu coração. Pensou em fingir não ter acontecido nada. Talvez fosse apenas sua imaginação, tentou se convencer. Porém, sua visão periférica lhe gritava em alerta de que o vulto ainda estava lá.

Usando-se da misera coragem restante em suas veias, ela se enrolou em uma manta e andou com passos inseguros pela estufa até próximo ao vulto escondido. Seu coração disparava a cada passo dado. Avistou olhos azuis acinzentados como nas noites de tempestades em um rosto oculto pelo capuz de uma capa marrom, sem poder controlar o susto Annie soltou um grito agudo.

— Eu não vou machucá-la. — Aos poucos o vulto se levantou e veio à luz. O jovem a encarava em súplica ao estender as mãos para demonstrar que não era uma ameaça. — Deixe-me ficar aqui, apenas um pouco, até...

Passos agitados e o barulho ritmado das botas de couro e das armaduras laminadas dos guardas Reais ecoaram do lado de fora. A porta da estufa foi aberta por um dos guardas com violência, Annie deu um pulo e pôs a mão no coração. Pela visão periférica, ela percebeu quando o invasor desconhecido escapuliu novamente para o escuro.

— Alteza, desculpe incomodá-la — o guarda disse ao reverenciá-la, ele parecia agitado. — Estamos à procura de um fugitivo. Talvez ele tenha se escondido na estufa.

— Fugitivo? — Ela puxou a manta sobre o peito para afastar o frio e esconder seu nervosismo manifestado em estranhos tremores.

— É um mago perigoso. Seria enforcado, mas enganou nosso carrasco e desapareceu. — O guarda fez sinal para os outros que esperavam ao lado de fora com espadas em punho para entrarem e iniciarem a busca.

— Não há nenhum mago aqui, senhor — ela disse com o máximo de firmeza possível, tentava não entregar o esconderijo com o olhar. De repente contrariar a guarda Real soou como uma aventura de livro e ela não pôde evitar. Uma tosse seca lhe escapou. — Seus homens estão deixando o vento esfriar meu refúgio. Saiam! — ela ordenou em sua pose de princesa, raramente usada por uma criatura tão frágil como ela. — Ou serão responsáveis por me deixar mais doente.

Ao ponderar a fala da princesa, o guarda solicitou aos outros que saíssem e se desculpou com uma reverência ao fechar a porta. Ela podia não ter lá muita importância para o casal Real, contudo ninguém desejaria levar a culpa por ter acelerado sua morte.
Annie abafou mais uma tosse e respirou aliviada. Olhou para o canto escuro:

— Está seguro agora, fugitivo.

— Obrigado, Alteza. — Ele se aproximou alguns passos e se ajoelhou aos pés dela com a cabeça baixa.

Ela achou graça, recebia poucas genuflexões. Fez sinal para ele se levantar e a acompanhar. Ofereceu ao invasor os pães e queijos restantes na bandeja do almoço. Enquanto este saciava a fome, ela aquecia as mãos à frente da lareira.

O fugitivo a observou com o canto dos olhos e ela fez o mesmo. Pensava o que faria a seguir, afinal arriscara sua segurança ao escondê-lo e não tinha certeza de como ele poderia sair do Reino do Leste. 
Teria errado em acobertar um fugitivo? E se ela corresse perigo? As ideias estralavam em sua mente como o fogo a aquecer suas mãos.

— Alteza. — A voz masculina e jovem a convocou, enquanto os olhos acinzentados a observavam curiosos. — Por que me salvou?

— Enforcamentos me dão náusea. — Ela sorriu ao encará-lo. Isso era verdade, mas esse era o motivo?, perguntou-se em silêncio. Então desviou o olhar. — Ainda mais por superstições tolas.

— Então acredita que eu seja inocente das acusações? — O rapaz a encarou surpreso. — Será a primeira neste reino.

— Meu povo é supersticioso! Mas não eu. — Ela sorriu ao soltar a manta sobre a poltrona, quando se sentiu aquecida novamente pelo fogareiro. — Um dragão ser visto rondando o céu no mesmo dia em que chegou ao reino é apenas uma coincidência. Não faz de você um encantador de dragões que deseja arruinar o reino.

— Vossa Alteza é sábia. — Ele sorriu ao reverenciá-la. — Mesmo assim, ainda sou um fugitivo. Por que se preocupar em ajudar-me?

— Seus olhos me dizem que seu coração é bom — soltou sincera em um sussurro. — E não posso concordar que possuidores de bons corações sejam enforcados por estarem no lugar e na hora errada.

— Serei eternamente grato à Vossa Alteza!

— Dei-lhe uma chance de ter mais uma noite de vida. — Ela o fitou com pesar. — Mas não posso lhe garantir outra ou uma rota de fuga.

— Deu-me o necessário. — O rapaz sorriu-lhe, uma fileira de dentes brancos alinhados se mostrou. 

— Ao amanhecer partirei com cuidado, talvez tenha sorte em retornar ao meu lar salvo.

— Talvez.

A tosse e a fraqueza lhe tomaram conta, fazendo-a se arquear para frente. As mãos do rapaz a ampararam e a ajudaram a se deitar sobre a poltrona.

— Vossa Alteza não parece bem.

— Nada diferente de simples rotina.

Ela sorriu na tentativa de afastar o olhar de pena de si. Estes eram frequentes e a incomodavam tanto que preferia se refugiar na adorável estufa. Estava acostumada com sua solidão, interrompida apenas pela aia que vinha trazer-lhe comida três vezes por dia e algumas visitas do curandeiro para averiguar o avanço de sua doença.

— Vossa Alteza será curada. — Ele sorriu ao lhe oferecer um copo de água. — O reino tem grandes curandeiros.

— Meu sangue é doente, os curandeiros nada podem fazer. — Os olhos acinzentados lhe fitaram tristes. Ela lhe sorriu conformada. — Esta é minha vida, estou acostumada a ela. Não tem importância. — E riu irônica. — Diante das circunstâncias, talvez eu viva mais do que você.

— Bom argumento. — Ele fitou-a divertido. — Mas tenho certeza desta noite de vida. Então deixemos de nos preocupar com o amanhã, por enquanto.
Annie consentiu com um aceno. O rapaz pegou um dos livros deixados ao lado da poltrona e o analisou. Os lábios dele se abriram surpresos ao observar as poesias, e citou outras do mesmo autor. 

A princesa se surpreendeu pelo conhecimento do intruso, esses eram livros trazidos de muito longe, presentes de uma de suas irmãs quando se casou com o príncipe do Sul. E se deixou relaxar sobre a poltrona enquanto o estranho de olhos acinzentados lia em voz alta trechos dos livros deixados na estufa.

As duas luas reinavam no céu há um longo tempo e informavam à princesa que era hora de se retirar aos seus aposentos Reais. Seria mais seguro ao visitante que ela saísse da estufa logo, antes que a aia viesse chamá-la.
Interrompeu a leitura do rapaz ao se levantar. Ele a fitava atento ainda com o livro aberto nas mãos, enquanto ela lhe informava sua saída.

— Desejo-lhe uma boa-noite — ela disse com um sorriso tímido nos lábios. — E que sua fuga seja bem-sucedida.

Após um aceno, ela virou em direção à porta. O rapaz segurou sua mão, surpreendendo-a.

— Agradeço novamente sua gentileza em me salvar. — Ele se aproximou com os olhos atentos a ela. 

— Demonstrou ser mais do que uma simples princesa. Seu coração é bom. Por isso, eu lhe concederei um presente.

Enquanto Annie tentava compreender as palavras, os lábios do rapaz selaram os seus. Neste momento, não houve mais pensamentos, apenas o desejo daquele beijo. Um beijo proibido entre uma princesa e um fugitivo, mas um beijo ansiado desde que seus olhos se cruzaram com os azuis acinzentados no canto escuro da estufa.

Ela o envolveu com os braços e os lábios se tornaram urgentes. As mãos do fugitivo apertaram suas costas, pressionando-a sobre seu corpo. O ar faltou-lhe, tentou escapar daquele abraço cruel em vão. Apavorada, fitou pela última vez os olhos acinzentados antes de apagar.

***
Ao amanhecer, Annie acordou em um sobressalto. Estava deitada na poltrona enrolada em sua manta. Olhou para os lados, mas não havia nenhum sinal do misterioso rapaz. Sentou-se enquanto decidia se fora ou não um sonho. Ela mantinha seu olhar furtivo pela estufa. Sentiu o braço latejar dolorido, ao erguer a manga do vestido percebeu um rasgo em seu braço de um ferimento parcialmente coagulado. Confusa, olhou novamente ao redor. O que aconteceu?

Sobre o livro de poesia havia um bilhete. Pegou-o com receio.

“Perdoe-me pelo ferimento, mas era a única maneira de lhe oferecer um pouco do meu sangue de mago, o que irá curá-la. Ao final, algumas superstições se mostram verdadeiras, mesmo que julgadas erroneamente pela maioria. Adeus, Alteza.”

Ela guardou o bilhete dentro de um livro e sorriu sem mais tosses ou cansaço. Guardaria, por décadas, o brilho dos olhos azuis acinzentados que lhe tocou o coração e lhe deu uma nova vida.

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Beijinhos, S. G. Conzatti

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