Rodeada de flores coloridas, ervas cheirosas e pequenas árvores frutíferas, Annie se sentou na longa poltrona de madeira forrada com pelos de carneiro. As mãos trêmulas seguravam com dificuldade o pequeno livro, enquanto o fogo estalava na lareira aquecendo a estufa Real.
Apesar de ser uma princesa do Reino do Leste, era a quinta filha entre seis irmãs e dois irmãos; isso, somado à fragilidade de seu sangue, a descartava de futuros arranjos políticos através de um casamento, sendo assim ela era livre das obrigações e dos interesses Reais.
Dispensar as tardes com leituras de poesia e filosofia na estufa era-lhe então possível, enquanto seus irmãos e irmãs se ocupavam com os mais diversos tutores em lições entediantes de política, economia e bons costumes.
O estrondo seco da porta da estufa sendo aberta às pressas e o vento frio fez Annie fixar o olhar assustada na entrada a tempo de avistar um vulto correr entre as plantas e se ocultar num dos cantos escuros.

— Eu não vou machucá-la. — Aos poucos o vulto se levantou e veio à luz. O jovem a encarava em súplica ao estender as mãos para demonstrar que não era uma ameaça. — Deixe-me ficar aqui, apenas um pouco, até...
Passos agitados e o barulho ritmado das botas de couro e das armaduras laminadas dos guardas Reais ecoaram do lado de fora. A porta da estufa foi aberta por um dos guardas com violência, Annie deu um pulo e pôs a mão no coração. Pela visão periférica, ela percebeu quando o invasor desconhecido escapuliu novamente para o escuro.
— Alteza, desculpe incomodá-la — o guarda disse ao reverenciá-la, ele parecia agitado. — Estamos à procura de um fugitivo. Talvez ele tenha se escondido na estufa.
— Fugitivo? — Ela puxou a manta sobre o peito para afastar o frio e esconder seu nervosismo manifestado em estranhos tremores.
— É um mago perigoso. Seria enforcado, mas enganou nosso carrasco e desapareceu. — O guarda fez sinal para os outros que esperavam ao lado de fora com espadas em punho para entrarem e iniciarem a busca.
— Não há nenhum mago aqui, senhor — ela disse com o máximo de firmeza possível, tentava não entregar o esconderijo com o olhar. De repente contrariar a guarda Real soou como uma aventura de livro e ela não pôde evitar. Uma tosse seca lhe escapou. — Seus homens estão deixando o vento esfriar meu refúgio. Saiam! — ela ordenou em sua pose de princesa, raramente usada por uma criatura tão frágil como ela. — Ou serão responsáveis por me deixar mais doente.
Ao ponderar a fala da princesa, o guarda solicitou aos outros que saíssem e se desculpou com uma reverência ao fechar a porta. Ela podia não ter lá muita importância para o casal Real, contudo ninguém desejaria levar a culpa por ter acelerado sua morte.
Annie abafou mais uma tosse e respirou aliviada. Olhou para o canto escuro:
— Está seguro agora, fugitivo.
— Obrigado, Alteza. — Ele se aproximou alguns passos e se ajoelhou aos pés dela com a cabeça baixa.
Ela achou graça, recebia poucas genuflexões. Fez sinal para ele se levantar e a acompanhar. Ofereceu ao invasor os pães e queijos restantes na bandeja do almoço. Enquanto este saciava a fome, ela aquecia as mãos à frente da lareira.
O fugitivo a observou com o canto dos olhos e ela fez o mesmo. Pensava o que faria a seguir, afinal arriscara sua segurança ao escondê-lo e não tinha certeza de como ele poderia sair do Reino do Leste.
Teria errado em acobertar um fugitivo? E se ela corresse perigo? As ideias estralavam em sua mente como o fogo a aquecer suas mãos.
— Alteza. — A voz masculina e jovem a convocou, enquanto os olhos acinzentados a observavam curiosos. — Por que me salvou?
— Enforcamentos me dão náusea. — Ela sorriu ao encará-lo. Isso era verdade, mas esse era o motivo?, perguntou-se em silêncio. Então desviou o olhar. — Ainda mais por superstições tolas.
— Então acredita que eu seja inocente das acusações? — O rapaz a encarou surpreso. — Será a primeira neste reino.
— Meu povo é supersticioso! Mas não eu. — Ela sorriu ao soltar a manta sobre a poltrona, quando se sentiu aquecida novamente pelo fogareiro. — Um dragão ser visto rondando o céu no mesmo dia em que chegou ao reino é apenas uma coincidência. Não faz de você um encantador de dragões que deseja arruinar o reino.
— Vossa Alteza é sábia. — Ele sorriu ao reverenciá-la. — Mesmo assim, ainda sou um fugitivo. Por que se preocupar em ajudar-me?
— Seus olhos me dizem que seu coração é bom — soltou sincera em um sussurro. — E não posso concordar que possuidores de bons corações sejam enforcados por estarem no lugar e na hora errada.
— Serei eternamente grato à Vossa Alteza!
— Dei-lhe uma chance de ter mais uma noite de vida. — Ela o fitou com pesar. — Mas não posso lhe garantir outra ou uma rota de fuga.
— Deu-me o necessário. — O rapaz sorriu-lhe, uma fileira de dentes brancos alinhados se mostrou.
— Ao amanhecer partirei com cuidado, talvez tenha sorte em retornar ao meu lar salvo.
— Talvez.
A tosse e a fraqueza lhe tomaram conta, fazendo-a se arquear para frente. As mãos do rapaz a ampararam e a ajudaram a se deitar sobre a poltrona.
— Vossa Alteza não parece bem.
— Nada diferente de simples rotina.
Ela sorriu na tentativa de afastar o olhar de pena de si. Estes eram frequentes e a incomodavam tanto que preferia se refugiar na adorável estufa. Estava acostumada com sua solidão, interrompida apenas pela aia que vinha trazer-lhe comida três vezes por dia e algumas visitas do curandeiro para averiguar o avanço de sua doença.
— Vossa Alteza será curada. — Ele sorriu ao lhe oferecer um copo de água. — O reino tem grandes curandeiros.
— Meu sangue é doente, os curandeiros nada podem fazer. — Os olhos acinzentados lhe fitaram tristes. Ela lhe sorriu conformada. — Esta é minha vida, estou acostumada a ela. Não tem importância. — E riu irônica. — Diante das circunstâncias, talvez eu viva mais do que você.
— Bom argumento. — Ele fitou-a divertido. — Mas tenho certeza desta noite de vida. Então deixemos de nos preocupar com o amanhã, por enquanto.
Annie consentiu com um aceno. O rapaz pegou um dos livros deixados ao lado da poltrona e o analisou. Os lábios dele se abriram surpresos ao observar as poesias, e citou outras do mesmo autor.
A princesa se surpreendeu pelo conhecimento do intruso, esses eram livros trazidos de muito longe, presentes de uma de suas irmãs quando se casou com o príncipe do Sul. E se deixou relaxar sobre a poltrona enquanto o estranho de olhos acinzentados lia em voz alta trechos dos livros deixados na estufa.
As duas luas reinavam no céu há um longo tempo e informavam à princesa que era hora de se retirar aos seus aposentos Reais. Seria mais seguro ao visitante que ela saísse da estufa logo, antes que a aia viesse chamá-la.
Interrompeu a leitura do rapaz ao se levantar. Ele a fitava atento ainda com o livro aberto nas mãos, enquanto ela lhe informava sua saída.
— Desejo-lhe uma boa-noite — ela disse com um sorriso tímido nos lábios. — E que sua fuga seja bem-sucedida.
Após um aceno, ela virou em direção à porta. O rapaz segurou sua mão, surpreendendo-a.
— Agradeço novamente sua gentileza em me salvar. — Ele se aproximou com os olhos atentos a ela.
— Demonstrou ser mais do que uma simples princesa. Seu coração é bom. Por isso, eu lhe concederei um presente.
Enquanto Annie tentava compreender as palavras, os lábios do rapaz selaram os seus. Neste momento, não houve mais pensamentos, apenas o desejo daquele beijo. Um beijo proibido entre uma princesa e um fugitivo, mas um beijo ansiado desde que seus olhos se cruzaram com os azuis acinzentados no canto escuro da estufa.
Ela o envolveu com os braços e os lábios se tornaram urgentes. As mãos do fugitivo apertaram suas costas, pressionando-a sobre seu corpo. O ar faltou-lhe, tentou escapar daquele abraço cruel em vão. Apavorada, fitou pela última vez os olhos acinzentados antes de apagar.
***
Ao amanhecer, Annie acordou em um sobressalto. Estava deitada na poltrona enrolada em sua manta. Olhou para os lados, mas não havia nenhum sinal do misterioso rapaz. Sentou-se enquanto decidia se fora ou não um sonho. Ela mantinha seu olhar furtivo pela estufa. Sentiu o braço latejar dolorido, ao erguer a manga do vestido percebeu um rasgo em seu braço de um ferimento parcialmente coagulado. Confusa, olhou novamente ao redor. O que aconteceu?
Sobre o livro de poesia havia um bilhete. Pegou-o com receio.
“Perdoe-me pelo ferimento, mas era a única maneira de lhe oferecer um pouco do meu sangue de mago, o que irá curá-la. Ao final, algumas superstições se mostram verdadeiras, mesmo que julgadas erroneamente pela maioria. Adeus, Alteza.”
Ela guardou o bilhete dentro de um livro e sorriu sem mais tosses ou cansaço. Guardaria, por décadas, o brilho dos olhos azuis acinzentados que lhe tocou o coração e lhe deu uma nova vida.
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Beijinhos, S. G. Conzatti
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