29 de dez. de 2018

Fome: capítulo 1

Primeiro Capítulo:

O trio de amigos se reunia na sorveteria, planejavam os últimos dias de férias antes que suas vidas se modificassem para sempre. Deixariam a segurança da pequena escola e se aventurariam nos imensos corredores da universidade.

Lipe insistia que a amizade seria a mesma, não importava se os cursos escolhidos eram diferentes. Nando se mostrava pessimista. Lucas os ouvia sem opinião, enchia a boca com o crepe quádruplo de queijo e calabresa. Desde que ele fizera dezoito anos, na semana anterior, sentia uma fome constante.
Seus amigos diziam que era hormonal, que eles também passaram por isso no período de crescimento, em anos anteriores. Mas Lucas discordava, tinha impressão de que sua fome estava relacionada à pressão por entrar na vida adulta.

Fazer medicina era seu sonho, e ter passado no vestibular e ainda conseguido uma bolsa parecia bom demais para acreditar. Até sua mãe, uma constante criatura assustada, sorria feliz nestes últimos dias. Era muita responsabilidade, e ele tinha medo de estragar tudo.

— Vejam o que consegui. — Nando jogou sobre a mesa três ingressos para o show de uma banda novata um bocado underground.

— Isso é perfeito para nosso último final de semana. — Lipe sorriu ao analisar os convites pretos com o nome da banda escrita em vermelho como se fosse sangue escorrendo.

— Eu havia combinado de ficar em casa com minha mãe — Lucas se pronunciou. Os amigos lhe lançaram um olhar de deboche, e ele suspirou condescendente. — Ok. Vamos ao show.

Deram-lhe tapinhas amigáveis nas costas ao saírem após combinarem o local de horário de encontro. Ir ao show seria interessante, o problema seria lidar com a frustração de sua mãe.

Os amigos não compreendiam por que ele deixava, com certa frequência, de sair com estes para fazer companhia à mãe. Mas como ele podia deixá-la sozinha com seus medos noturnos? Ela era uma mulher que vivia sobressaltada. Pessoas passando na calçada, ligações, entregadores a baterem na porta, ou apenas um animal pulando no quintal a assustavam de modo a trancar todas as portas e janelas e permanecer tremendo e rezando até o amanhecer.

Lucas perdera as contas de quantas vezes ele fora puxado pelo braço de maneira inesperada e arrastado para fora de um mercado ou uma loja por sua mãe ter visto alguém que lhe causasse pânico. O garoto acatava o gesto dela e lhe seguia silencioso para longe, por desconfiar que todo esse medo era resquício do sofrimento causado pela morte misteriosa de seu pai, quando Lucas era um bebê, a respeito da qual a mãe nunca falava.

Você precisa seguir sua vida! Não poderá mais cuidar da sua mãe, estará envolvido com a faculdade.

A voz em sua cabeça lhe avisava. Ao menos esperava que ao final da medicina tivesse capacidade técnica para curar esse medo crônico de sua mãe.

Ao chegar em casa abriu a porta com cuidado, sem fazer ruído. Usou-se de usa agilidade atlética bem desenvolvida para subir as escadas, passar pela porta do quarto da mãe e alcançar o seu próprio, sem acordá-la de seu descanso da tarde.

Trocou a roupa, tentou encontrar uma camiseta que combinasse com o clima underground do show, encontrou uma preta com a imagem de um zumbi que ganhara juntamente com o box da primeira temporada de Walking Dead em uma rifa da escola, há alguns anos.

Olhou-se no espelho e se achou ridículo, mas servia para o show. Provavelmente Lipe e Nando estariam ainda piores.

Antes de sair, fez um carinho no querido hamster ao aproximá-lo do rosto e beijar seu focinho, largou-o com cuidado sob a rodinha da gaiola e deslizou ligeiro e silencioso pelas escadas até a porta de entrada. Planejava escrever um bilhete para a mãe, mas percebeu-a acordada fazendo o jantar.

— Por Deus, Lucas! — A mãe botou a mão sobre o coração, ao perceber sua presença na porta da cozinha. – Por onde você veio? Não o havia visto.

— Pela escada e depois pelo corredor. — Lucas sorriu amigável. — O mesmo caminho de sempre.

— Não implique com sua mãe — ela o repreendeu. E ao observá-lo ergueu a sobrancelha. — Por que está com essa blusa horrível?

— Vou sair com Lipe e Nando, vamos a um show — ele respondeu de supetão e foi roubar alguns bolinhos de arroz já fritos.

— Pensei que veríamos alguns filmes, e... — Sua voz possuía um enorme desapontamento. Uma sensação de culpa se manifestou, contudo estava decidido a viver mais sua própria vida.

— Você ficará bem e eu ficarei bem. — Ele segurou sua mão, quando ela começou a tremer e derrubou um dos bolinhos fora da panela. — Estarei em casa antes das 23h. Não se preocupe.

— Você está certo. — Ela forçou um sorriso e soltou um suspiro aliviado. — Afinal você já fez dezoito, isso significa que nada de ruim vai acontecer, aquele homem estava errado.

— O quê? — Lucas a observou sem compreender. Minha mãe conversa com homens misteriosos?
Um terapeuta talvez.

— Não é nada. — Ela sorriu. — Você merece se divertir. — Ela lhe beijou a mão, ainda segura entre as dela e sorriu. — Vá, meu filho, e se divirta.

Ver a mãe envolta dessa aura de tranquilidade era raríssimo. Lucas agradeceu a sorte de ela estar em um bom dia. Acenou e saiu antes que o humor dela se transformasse e ele acabasse desistindo de sair com os amigos como fizera tantas vezes.
Confira o capítulo seguinte (em breve)

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Beijinhos, S. G. Conzatti

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